O desaparecimento do Professor Mário Moniz Pereira representa também o fim de um tempo no Sporting. De um tempo e de personalidades cuja vida e acção acabou por se fundir com o nome do clube. De um tempo de convicções e ideais.
Talvez não por acaso, Moniz Pereira chegou ao clube pela mão de Salazar Carreira, um nome que a poeira do tempo foi progressivamente sepultando no esquecimento, mas cujo papel seria determinante para o Sporting ser hoje o que é. Foi um dos principais responsáveis pelo lançamento das sementes do ecletismo, tendo sido praticante de Andebol, Natação, Polo Aquático, Tiro, Ténis, Atletismo e Râguebi. Seria desta modalidade que herdaríamos as camisolas listadas que hoje são o nosso equipamento principal, sendo que foi o responsável pela introdução no clube do Andebol e Voleibol.
Salazar Carreira foi atleta durante 25 anos (!). Sim, leu bem, 25 anos! Mas durante esse tempo foi também dirigente, ocupando várias funções, até chegar a presidente, em 1925. Nesse período foi o principal dinamizador do Boletim do Sporting, percursor do actual jornal, o mais antigo do mundo no seu género. Ao deixar em testamento a sua biblioteca desportiva a Mário Moniz Pereira, Salazar Carreira não podia ter escolhido mais nobre e leal herdeiro.
A morte de um vulto como Moniz Pereira, cuja obra e exemplo mudou o curso da história do desporto, em particular no atletismo, provocaria sempre comoção, bem como homenagens e tributos de forma transversal na sociedade portuguesa. No Sporting, por razões óbvias, essas reacções seriam exponenciadas. Afinal Moniz Pereira não era apenas um de nós, a sua vida e obra tornou-o membro do um lote restrito de "primus inter pares".
Houve, em muitas dessas reacções, algo que me chamou à atenção e que é uma marca muito profunda no "actual Sporting": a procura incessante de ajuste de contas com o passado. Tal como em várias outras ocasiões, para que a narrativa tivesse alguma coerência, foi convenientemente esquecido um aspecto importante da vida do Professor: o seu passado como dirigente desse tempo, cujas contas estão permanentemente em aberto para ajuste. Numa versão menos favorável é o período de tempo que muitas vezes serve para ser usado como desculpa para não se fazer melhor, não se querer ou exigir mais.
Não o tendo conhecido pessoalmente, duvido que Moniz Pereira quisesse ver-se assim instrumentalizado. É o exemplo de alguém cujas escolhas nem sempre concordámos, mas cujo Sportinguismo nunca poderia ser posto em causa, como foi por muitos com
objectivos específicos. E se há um traço comum na sua passagem pelo Sporting esse é a coerência, a honestidade, a convicção, diria mesmo até a convicção obstinada. Não vejo por isso a renegar uma parte importante do seu passado, mais propriamente entre 1995 e 2011.
Foi no seu tempo de vice-presidente, ao tempo de Santana Lopes, que foi feito o infame referendo sobre as modalidades, com o resultado de todos conhecido. Foi ainda com a sua participação nos órgãos sociais que foi erigido o estádio em que, apesar das promessas que lhe foram feitas, não haveria pista de atletismo. E já quando a contestação crescia no mandato de Bettencourt, foram várias as vezes que saiu em defesa da direcção de que fazia parte, quando eram por demais evidentes os sinais de desgoverno.
Em que é isso menoriza a figura de Moniz Pereira? A meus olhos nada. Provavelmente, pela sua vontade alguns dos erros cometidos teriam sido evitados, outros até mesmo aprofundados. Por exemplo, a pista de atletismo no estádio de Alvalade seria um deles. Se hoje nos queixamos do fosso, o que seria Alvalade com oito pistas a separar-nos do relvado? E quem não se lembra do aspecto desolador do velho Alvalade a menos de um quarto da lotação para ver atletas de primeiro plano mundial, nos meetings de Santo António organizados por Moniz Pereira?
A questão central neste ajuste de contas interno que se assiste em modo permanente há já vários anos está na forma desonesta como frequentemente é efectuado. Desonesto porque se personaliza em apenas alguns as decisões que, em grande parte, foram tomadas de forma colectiva, com maiorias quase sempre retumbantes. Onde estão hoje os que votaram favoravelmente?
A contestação a decisões como a construção do estádio, o respectivo financiamento e execução das obras e orçamentos, a extinção de modalidades ou mesmo as contas da SAD e do clube, (que mereceram aprovação quase sempre expressiva) feita hoje, ignorando muitas vezes as condições e circunstâncias de então também é outro sintoma de desonestidade. Quem em devido tempo se levantou contra a construção do estádio? Quem então fiscalizou a execução da obra e das condições de financiamento? Hoje é fácil.
A contestação ao testemunho de Filipe Soares Franco sobre Moniz Pereira, produzido num canal de televisão, é um óptimo exemplo como ilustração. Tendo em conta o sujeito da contestação - FSF - e o histórico deste blogue, sinto-me ainda mais autorizado para o referir.
Quem conhece um pouco da história recente do clube sabe que a sua escolha como testemunha da importância de Moniz Pereira na vida do Sporting é infeliz. Não apenas porque FSF é quase a antítese do comunicador nato, caindo frequentemente na tendência de se enredar em considerações laterais. Mas sobretudo porque era conhecida de há muito a sua visão para o clube, onde o ecletismo e o associativismo não tinham lugar. Em tudo antagónica à de Moniz Pereira e ao seu percurso de vida: atleta, dirigente e associado nº 2. No entanto, tal como ontem FSF lembrou, o Professor foi seu apoiante de primeira hora e como tal transitou para o consolado de José Eduardo Bettencourt.
O mandato de FSF foi dos mais criticados aqui, sendo muitas dessas criticas causadas pela venda de património, e a funesta invenção das VMOC´s, das quais ainda vamos ouvir falar e provavelmente penar. As dele, que ainda não foram pagas, e as que entretanto "nasceram". Mas é do mandato dele que vem o maior investimento na formação, sendo grande parte dos actuais "Aurélios" lançados nesse tempo e no de JEB. É fácil olhar para os títulos "Selecção de Portugal utiliza dez jogadores formados pelo Sporting" e bater no peito: "Ah, isto é o Sporting", mais difícil é assumir todo o processo e os custos reais, com todas as virtudes e todos os erros cometidos.
Não duvido que este é um dos maiores problemas do Sporting, a nível interno: o da sua reconciliação com o seu passado. Este "novo Sporting" começou por ser binário: "nós" ou o "Sporting é nosso", como os dignos e únicos representes do verdadeiro "Espírito Leonino". Agora ameaça tornar-se esquizofrénico: reconhece apenas os êxitos como deles, o passado de glória pertence-lhes. Os fracassos foram os "outros". Mesmo quando os responsáveis por uns e outros sejam em muitos casos os mesmos.
Esta atitude foi inicialmente fomentada pela actual administração e instrumental para chegar ao poder. Tal até se compreende pelo desejo geral de corte epistemológico com um passado que a antecedeu. Mas, como estratégia, é falível a curto prazo, a menos que os resultados - sempre os resultados! - a sustente.
Parece-me que este "Sporting do antes e depois" é um Sporting menor. Pode até servir momentaneamente os interesses dos que estão de passagem. Mas não os de uma instituição centenária cuja maior força sempre residiu no seu carácter inclusivoe abrangente, onde se acolhem indistintamente pessoas de qualquer "ascendência, sexo,raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social".