2 razões para este post: a oportunidade para desejar uma Páscoa Feliz a todos os que lêem este blogue e lembrar Gabriel Garcia Marquez, esse grande escritor colombiano, ontem falecido. Gabriel Garcia Marquez foi jornalista e a crónica que abaixo se partilha foi escrita por ele, num mês de Abril de 1950, retratando uma das suas primeiras idas ao futebol.
Nesse jogo Garcia Marquez falaria do craque brasileiro Helénio de Freitas, um craque saído em desgraça do Botafogo, com passagem curta pela Argentina, até chegar ao país do café e mulheres bonitas ao Juniores de Barranquilla. Aí haveria de cruzar com Alfredo Di Stéfano, hoje símbolo do Real Madrid, então jogador do Millionários.
Dois anos volvidos Garcia Marquez voltaria a ver Helénio no mesmo estádio. A crónica desse momento, mesmo que breve, condensa um pouco do que é o futebol e as suas contradições.
"No primeiro dia do mês em curso escreveu-se nesta secção uma crónica sobre abril. Esperava este jornalista que no transcurso desses trinta dias acontecessem algumas coisas interessantes, entre elas, que Pafúncio se fartasse com um pratarraz de feijão com arroz no boteco do Perico; que Clark conseguisse seduzir a Srta. Lane sem necessidade de transformar-se em Super-Homem e que Tarzan deixasse de praticar as suas piruetas atleticamente selvagens.
Parece que no que já transcorreu do mês nada disso aconteceu, como não acontecerá no que falta dele, segundo se pode suspeitar. Quanto ao casamento de Ingrid Bergman, as últimas notícias dão a entender que o Director Rosselini ainda espera saber com quem se pareça a criança antes de lançar ao pescoço a coleira conjugal. Em síntese, a única coisa que parece ter dado certo naquela crónica de saudação aprilina foi a comprovada reivindicação do Dr. Heleno de Freitas no gramado do campeonato nacional. Um acordo que poderia encher de orgulho o próprio dr. Gallup, não tanto por sua precisão, mas pela circunstância especial de que quem revelou a notícia a respeito do jogador brasileiro jamais se sentou nas bancadas de um estádio.
Tenho o costume – e isso pode ser uma das formas da inclinação pelo desporto – de observar, nas tardes dos domingos, o rosto daqueles que deixam o estádio. A tarde em que o dr. De Freitas se apresentou pela primeira vez, é muito possível que, se ele tivesse a capacidade de entender certas interjeições castelhanas, teria regressado ao Brasil no primeiro avião.
O tempo passou e no domingo seguinte, depois de treinar incansavelmente com os companheiros, o dr. De Freitas deve ter chegado à conclusão de que, mais do que tais práticas desportivas, lhe seria melhor uma prática metódica e consciente da gramática castelhana. Foi talvez por isso que lhe correu melhor a sua segunda apresentação, mostrando-se já capaz de compreender que a gritaria vinda das tribunas não era de aprovação, mas de descontentamento.
Foi já na sua nova apresentação em Barranquilla, de volta de Cáli, que o dr. De Freitas se mostrou capaz de conjugar perfeitamente os tempos simples do verbo “fazer”. “Farei milagres”, declarou à imprensa, ao dar-se conta de que o público queria exactamente isso. Que fizesse milagres. E, segundo me contam alguns que estiveram nesse dia no Estádio Municipal, o que o brasileiro fez foi uma milagrosa actuação. Praticamente, disseram, o dr. De Freitas – que deve ser um bom advogado – redigiu nesta tarde, com os pés, memoriais e sentenças judiciais não apenas em português e espanhol alternadamente, mas também citações de Justiniano no mais puro latim clássico.
Agora ninguém mais discute que Abril foi o mês definitivo para o dr. De Freitas, e isso porque ele aprendeu a traduzir para o espanhol toda essa gíria que tanto prestígio lhe deu em seu país de origem. Como diz um grande contista nosso: “O importante é a gramática.”
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Dois domingos atrás o público de Barranquilla foi ao Estádio Municipal com o único objectivo de presenciar a volta do dr. Heleno de Freitas. Tenho a impressão de que, mais que as mãos para aplaudir, os adeptos levavam as gargantas para apupar. Não seria o mesmo Heleno de há dois anos o que naquela tarde iria aparecer no relvado. Era um homem completamente diferente, dois anos mais velho, já passado pelo torno de uma consciente e multitudinária análise, cujos resultados ainda são desconhecidos, o que impediu a todos que entendem de futebol atrever-se a dizer se Heleno é um génio ou um embuste sem o perigo de ter de se retratar no domingo seguinte.
Os dirigentes do Junior mais uma vez trouxeram o advogado brasileiro aos relvados colombianos, e com isso demonstram possuir um inteligente conhecimento da psicologia colectiva. Um público que paga para ver um espectáculo de qualidade é, de certa forma, um público sem esperança, ao qual nenhuma atracção promete o futuro. No entanto, sendo Heleno o que está na proa, o adepto vai ao estádio como quem leva no bolso um bilhete inteiro de lotaria. Porque com Heleno não existe meio-termo. Se se comporta como charlatão, o público sabe que comprou um bilhete em branco que lhe dá a oportunidade de vaiar. Em nenhum caso uma partida da qual participe Heleno tem probabilidade de se transformar num logro, porque vaiar, da mesma maneira como aplaudir, é uma forma colectiva de reconhecer publicamente um facto.
Os adeptos devem ter observado, através das fotografias que foram publicadas na imprensa local, que Heleno parecia não ter feito outra coisa no Rio de Janeiro senão engordar. De volta à capital brasileira, onde foi recebido como o personagem principal de um filme de bandidos, com revólveres e socos de ida e volta, o “mestre” – ou o palhaço – descuidou-se na sua dieta, guardou no armário, juntamente com o calção e demais artefactos do ofício, a prática diária de ginástica sueca, e ficou à espera de que lhe fosse dada uma absolvição, absolvição que chegou de onde ele menos esperava, ou seja, da episcopal equipe de Régulo Matera. Mas então Heleno começara a engordar. E o público de Barranquilla, que percebeu isso desde a sua chegada, rompeu todos os diques para se permitir mais uma vez o prazer de vaiá-lo.
Como, semanas atrás, me arrisquei a dizer, o Júnior de Barranquilla agora está completo. Quando vencer, será uma equipa admirável, bem-ajustada, com um moral de cimento armado. Se perder – e oxalá isso aconteça poucas vezes - Heleno se tornará mais uma vez o farsante, o palhaço. E com isso o público ficará feliz, já que no futebol se segue a regra de que, quando a equipa ganha, os adeptos também ganham, mas quando perde cabe à equipa enfrentar sozinho a borrasca da derrota. Neste último caso, os adeptos limitam-se a pagar as apostas e a dizer – no caso do Júnior de Barranquilla – que enquanto Heleno de Freitas estiver na Colômbia a culpa é dele e não das camisolas vermelhas às listas brancas.
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