Há 5 anos, por ocasião do 45º aniversário da conquista da Taça das Taças tive oportunidade de entrevistar João Morais, o autor do golo que equivaleu à conquista do troféu e que ficaria imortalizado como o Cantinho do Morais. Um momento agridoce, porque João Morais dava já os primeiros sinais da doença que o havia de consumir, mas simultaneamente inesquecível pela sua grandeza de alma e simplicidade contagiantes. Não tinha que ser assim, mas o Destino, seja lá o que isso for, foi feliz em juntar a personalidade de João e um dos momentos mais altos da história do Sporting.
Hoje celebram-se os 50 anos dessa conquista e, embora a entrevista seja sobejamente conhecida dos leitores habituais do blogue, parece-me a ocasião certa para a reeditar na íntegra. E, apesar da entrevista ser algo básica e reveladora da minha falta de experiência, julgo que é uma peça cuja partilha e divulgação vale a pena, pela importância do testemunho directo e do momento.
Este foi um dos momentos mais gratificantes deste espaço, daqueles que dá sentido a todo o trabalho e ao tempo perdido. Infelizmente, aquando da mudança ocorrida na plataforma Blogger, as perguntas dos leitores e respectivas respostas de João Morais perderam-se.
Passados todos estes anos que importância para si o seu feito? Ainda o vive com intensidade?
Claro que tem. Não podia deixar de ter. Para mim é como se fosse hoje, como se não tivessem passado 45 anos.
E sente que os Sportinguistas se lembram desta data, ainda o acarinham e lembram-se de si?Sem dúvida. Sempre que sou solicitado para acorrer aos núcleos as pessoas à minha volta acarinham-me.
Marcou o golo numa final que até esteve para não jogar, não é verdade?
É.
Veja as coincidências: jogávamos em Alvalade, contra o Vitória de
Setúbal, onde jogava o Carlos Cardoso, hoje o treinador, e o Hilário
lesionou-se. Eu não estava convocado e na bancada disse logo à Alice
(esposa): vais ver que me vão chamar. E assim foi: depois do jogo, pela
instalação sonora, mandaram-me dirigir ao Dep. de Futebol.
Mas o caminho para a final foi invulgarmente trabalhoso, pelo que rezam as crónicas…
Se
foi. Jogámos 3 jogos com o Atalanta, só nos livramos deles no jogo de
desempate em Barcelona, no estádio do Espanhol. E jogamos outros 3 com o
Lyon, que na altura tinha uma grande equipa também. E acabamos por só
ganhar na finalíssima.
Foi
uma campanha a todos os títulos memorável que deixou muita coisa para
lembrar. Por exemplo, a maior goleada de sempre nas competições da UEFA.
É
sim senhor e não deve ser muito fácil fazer melhor. Ganhamos 16-1 aqui
em Lisboa e na 2ª mão em Coimbra (acordo com o Apoel). Foi pena termos
levantado o pé senão não sei onde teríamos chegado. Mas é difícil
motivarmo-nos quando tudo está decidido.
Não
sei se gosto mais desse resultado se o que vos permitiu virar o
resultado de 4-1 com que foram derrotados com o Manchester United. Como
foi isso possível?
Olhe, com muita vontade e com muita união. Nós éramos um grupo muito unido.
Mas a equipa acreditava que podia virar o resultado ou foi fruto do acaso, mais um daqueles em que futebol é fértil?
Sempre
acreditamos que podíamos virar o resultado. Quando chegamos a Lisboa a
1ª coisa que fizemos foi pedir ao Sr. Mário Cunha, director do Dep.
Futebol, para afastar o Lúcio, um defesa brasileiro, porque sabíamos que
ele não se tinha portado como devia em Inglaterra. E pedimos para ficar
em estágio durante os 15 dias que faltavam para o jogo da 2ª mão.
A sério?
É
verdade, sim senhor! Só saímos de lá para jogar, treinar e para
recolher mudas de roupa interior, sempre acompanhados por um director.
Éramos um grupo muito unido e queríamos muito dar a volta aquele
resultado.
E conseguiram…
Pois
conseguimos. Marcamos cedo e fomos para cima deles. Ao quarto-de-hora
já ganhávamos por 2-0. Foi uma grande noite, sim senhor. Osvaldo Silva
fez um hat-trick. E foi assim que conseguimos chegar à meia-final.
A tal meia-final com o Lyon, que também teve que ir a desempate?Pois foi. Ganhámos por 1-0, num golo de Osvaldo Silva e ficamos apurados para a final.
Final que decorreu no célebre Heysel Park, que, mais uma vez, não parecia nada bem encaminhada…
É
verdade. Quando demos conta já estávamos a perder por 2-0, o que numa
final pode querer dizer que estamos arrumados. Mas nós acreditamos
sempre e acabamos por empatar o jogo, já quase no fim, a 3-3. No final
queríamos bater no Figueiredo no balneário. Numa jogada ele finta o
guarda-redes e com a baliza aberta virou as costas porque pensou que o
árbitro tinha apitado fora-de-jogo. Afinal tinha sido alguém da
assistência.
E foi assim que chegaram a Antuérpia a finalíssima?Exactamente.
O que lhe deu para marcar aquele canto daquela forma? Foi por acaso?
Não
foi nada por acaso. O Gilberto Cardoso era o nosso treinador do inicio
de época, que saiu para dar lugar ao Anselmo Fernandes. Com o Gilberto
Cardoso treinava muitas vezes aquele lance. E quando fui marcar o Manuel
Marques (massagista, grande figura Sportinguista) disse-me para marcar
dessa forma. Eu agarrei na bola, fiz a minha reza e disse-lhe: anda lá
minha menina, vais entrar ali naquela baliza. Quando a bola me bateu na
bota, naquele sitio que eu sabia, senti logo que ia entrar. E entrou
mesmo!
Foi um golo muito cedo, aos 20m de jogo. Ainda sofreram muito até ao fim do jogo?Não mais do que é normal numa final. Ganhamos muito justamente.
Foi um momento inesquecível, obviamente.
Não
imagina o que foi a nossa chegada a Lisboa. Fomos do Aeroporto ao
estádio Nacional, onde se jogava um jogo particular entre Portugal e a
Inglaterra. Fomos recebidos em delírio e recebemos os parabéns dos
jogadores do Benfica e de Bobby Charlton, que eliminamos por 5-0 no jogo
com o Manchester.
Do seu tempo de jogador qual o que mais admirou?
É
difícil de dizer. Joguei com muitos jogadores de grande qualidade, quer
como colegas ou adversários. Mas lembro-me que quando joguei com o
Travassos na asa esquerda, quando o Albano saiu, até marcava golos sem
saber como a bola me vinha parar aos pés.
Havia benfiquistas no seu plantel?
Não
sei se havia benfiquistas no meu plantel. O Mascarenhas tinha vindo da
Luz, é verdade. Mas na altura tinha-se muito respeito à camisola, hoje
tem-se respeito a um punhado de notas.
Destacaria alguém que lhe tenha sido mais difícil de ultrapassar ou travar?
Olhe,
quando jogava a extremo esquerdo o mais difícil de passar era o Festas,
do Porto, meu colega de selecção e meu suplente. Acabou por jogar no
meu lugar, contra a Inglaterra, naquele jogo fatídico, o que deu muita
polémica cá em Portugal. Quando eu jogava a defesa direito o mais
difícil foi sem dúvida o António Simões, do Benfica.
Pensava que me ia dizer o Pelé…
O Pelé não entrava na minha área de marcação. Mas era um jogador terrível. Parecia que conseguia colar a bola ao corpo.
No Mundial de 66 houve faíscas entre si e Pelé.
Nada
de muito especial. Ele tinha caído sobre a direita e sabia que não
podia deixá-lo dominar a bola. Ela vinha em direcção à cabeça dele e eu,
vendo que estava fora da área, fiz o que pude, o que deve um defesa
fazer para defender os interesses da equipa… O homem teve que sair, mas
antes disse-me que me ia acertar. E quando entrou deu-me mesmo. Caí no
chão cheio de dores. Quando o Manuel Marques chegou perguntei-lhe se
tinha os dentes todos. O Manuel Marques, naquele jeito dele, disse-me:
tens os dentes todos, não sejas maricas e levanta-te lá. Mais tarde,
numa entrevista à BBC ele foi o próprio Pelé a reconhecer que foi um
lance normal de futebol.
Ganharam esse jogo por 3-1, contra o Brasil de Pele e Garrincha. Como foi isso possível?Olhe,
nós entravamos sempre para ganhar e até poderíamos ter sido campeões do
Mundo naquele ano. Foi pena termos tido que recuperar daqueles 1-3
contra a Coreia, que nos deixou estourados. Fomos jogar a meia-final
cansados, o hotel era longe e ficava numa zona que não permitiu o
repouso. Ainda por cima os Ingleses regaram o campo, quando eles eram de
porte atlético maior que o nosso e arbitragem foi habilidosa, como é
normal nestas coisas com a equipa organizadora.
O que acha da equipa do Sporting de hoje?
Olhe,
acho que o Paulo Bento está a fazer um trabalho razoável, embora mexa
em demasia na equipa. Uma equipa joga com os mesmos sempre a não ser em
casos de lesões ou de má forma. Não passa pela cabeça de ninguém mexer
na equipa para jogar com o Bayern. O resultado viu-se. E o Sporting
precisa de um defesa central com pé esquerdo. Eu, se fosse no meu
tempo, fazia do Polga gato sapato. Metia-lhe a bola a passar pelo pé
esquerdo e ia por ali fora. Eu estudava os adversários e sabia como
jogavam. Se jogava do lado direito e apanhava pela frente o defesa com
pé esquerdo fugia-lhe para dentro, para o pé direito. Era muito rápido.
Sabia que uma vez o Prof. Moniz Pereira, (grande sportinguista, que
chorava pelo Sporting e não gostava de profssionais) perguntou-me se não
queria correr os 100m?
Dos jogadores que jogam hoje qual o que mais admira?O Veloso, o Moutinho e o Liedson, claro. É daqueles que dá sempre o litro.
Foram precisos mais de 30 anos para o Sporting voltar a uma final europeia. Porquê?
Olhe
para lá chegar é sempre preciso sorte. Mas é preciso também saber e
muito. É preciso que os treinadores percebam do seu ofício. Eu tive
grandes treinadores e os melhores deles eram também sportinguistas como o
Prof. Reis Pinto ou o Prof. Moniz Pereira. E que os jogadores sejam
bons, como eram no meu tempo, mas também que sejam mesmo uma equipa e
tenham vontade de ganhar, sem medos. Quando eliminamos o Manchester se
entrássemos a pensar nos nomes tínhamos ficado pelo caminho. E eles até
foram campeões europeus e a base da equipa campeã mundial de 66. E que
não esquecessem os antigos jogadores para ensinar os mais novos.
Como
vê o momento eleitoral no Sporting? Não acha que os Sportinguistas
andam muito divididos e os muitos candidatos são o espelho disso?
Não
dou muita importância a isso. Fazem falta vitórias. No meu tempo já era
assim. Começando a ganhar estas coisas não se fazem sentir.
Quem lhe parece que vai ganhar, pelo menos dos que se sabe já que vão concorrer?
Olhe
eu acho que o se o Dr. Soares Franco concorresse ganhava. Assim é
difícil de dizer. Olhe o Dr. Ribeiro Telles é também um grande
Sportinguista e daria um grande presidente. Na candidatura daquele
senhor da Judiciária tem lá também uma pessoa que estimo muito, a Drª
Isabel Trigo Mira. Conhece os núcleos todos e tem muito amor pelo clube.
Corri o País todo com ela e chegou-me a levar a New Jersey. Uma grande
Sportinguista.
Estes
são apenas os excertos que considerei mais importantes da longa conversa
que tive com João Morais. Uma viagem fantástica de Sportinguismo desde o
ano em que nasci até aos dias de hoje. Sinto-me um privilegiado e
decidi dividir convosco esta distinção no momento em que celebramos a
nossa maior vitória internacional ao nível do futebol. O tempo não
precisa de voltar para trás para vivermos outra vez momentos como este.
Precisamos sim de saber olhar em frente, porfiar, acreditar e saber
ousar. Como o Morais, quando, em boa hora, decidiu saltar de um cantinho
para a glória. Logo, ao fim da tarde, ele estará aqui para ler os
vossos comentários e, caso assim o entendam, trocar impressões.