Com natural regozijo de todos nós a selecção nacional (como ganhou é de todos nós...) que recentemente se sagrou campeã europeia foi composta maioritariamente por jogadores formados no Sporting. Aos dez jogadores com marca Sporting na origem há ainda que acrescentar Eric Dier que, não fora a surpreendente eliminação do seu país, estava também ele destinado ao protagonismo na competição, tal como o golo de livre directo parecia pressagiar. Um número absolutamente notável, qualquer que seja o ponto de observação.
Antes de ir propriamente dito ao objectivo do presente artigo não ficar sem referência as tentativas de negação desta evidência. E não pode da mesma forma deixar de se salientar como a súbita metamorfose da "selecção de Jorge Mendes" - isto é a selecção dos interesses - na selecção de todos nós até chegar à selecção dos "Aurélios". Haveria muitas considerações a fazer em tudo isto, prefiro ficar-me pela conclusão que ganhar deixa toda a gente feliz. Tem, contudo, muitas vezes um efeito pernicioso: retira o espaço à sempre indispensável reflexão.
O Sporting entendeu (creio que a iniciativa partiu do próprio presidente) homenagear Aurélio Pereira cognominando os nossos "dez magníficos". De seguida ofereceu ainda a primeira página e demais interiores onde, numa extensa entrevista, ele explicou a forma pioneira como o Sporting lançou as bases do trabalho cujos resultados o Sporting e o futebol nacional têm ganho chorudos dividendos. Provavelmente mais até o segundo que o primeiro em termos globais e que nem sempre, ou quase nunca, é reconhecido.
Ambas as iniciativas são justas para com o homenageado e meritórias para quem as tomou. O reconhecimento personalizado em Aurélio Pereira, há que o dizer, deve também ser tributado a muitos que contribuíram para a materialização da ideia de Academia, onde fomos também pioneiros. Nomes que num clube de bem com a sua história deveriam agora também ser lembrados, mas terá que passar ainda algum tempo para o Sporting fazer as pazes consigo mesmo.
Pode até ser hoje inconveniente lembrá-lo, mas os "dez magníficos" de que se fala hoje são o produto de uma visão pioneira e do trabalho excepcional de muitos ao longo de quase duas décadas. É o corolário desse trabalho que vemos já alguns anos passar à nossa frente, sem muitas vezes o valorizarmos devidamente, porque por norma só são lembrados os vencedores.
E esta hegemonia do Sporting no futebol português, e tudo o que lhe foi dando ao longo destes anos, é estranha porque não equivaleu a títulos para o clube, mas cujo nome não se consegue apagar. Incluindo nas notáveis prestações da selecção nacional onde, depois de 2004 os jogadores formados em Alcochete assentaram arraiais. E, no futebol, foi a formação, quer em títulos colectivos, quer no reconhecimento individual, a resgatar-nos das brumas do esquecimento.
Creio que assistimos agora ao fim de um ciclo. Será difícil ao Sporting nos próximos tempos voltar a igualar aqueles números. Consequências de uma evolução natural, mas também do aperfeiçoamento dos nossos concorrentes, que depressa perceberam as virtudes do trabalho por nós efectuado. Mas também seguramente de erros próprios que, no momento em que são cometidos, por serem diferidas no tempo, não são percepcionadas as respectivas repercussões na sua verdadeira extensão. Mas só olhando para dentro é possível compreender verdadeiramente o estado das coisas.
Aurélio Pereira dizia, entre outras coisas importantes, que vinham aí gerações magnificas da nossa formação. De forma honesta mas sintomática não se referiu aos que deveriam estar agora na calha para, saindo dos júniores e da equipa B, se constituírem como reforço do quadro de profissionais da equipa principal no médio prazo. A forma como perdemos qualidade e com isso influência é notória quer na qualidade do jogo nos escalões referidos quer mesmo nas convocatórias das selecções nos respectivos escalões. Em muitos casos passamos de hegemónicos a residuais.
Aos que adoptam a fraqueza da teoria da conspiração como justificação, dando como explicação a influência dos interesses, lembro que mesmo que assim fosse isso equivaleria a assentir que perdemos então um poder que já detivemos. Era importante perceber porque assim foi.
A melhor forma de homenagear Aurélio Pereira era mantermo-nos fieis ao seu legado. A nossa hegemonia construiu-se sobre uma especial apetência na prospecção e detecção de talentos feita precocemente, assente numa teia de observadores, apoiados posteriormente na Academia numa equipa multidisciplinar de profissionais de qualidade reconhecida. Isso foi-se perdendo ao longo dos tempos, numa erosão transversal a toda a organização.
Essa erosão era já grande quando Bruno de Carvalho chegou à presidência e as pessoas a quem ele confiou a gestão da formação aparentemente têm-se entretido em aprofundá-la. O corropio de jogadores a entrar em Alcochete tem sido constante. Alguns deles sem nunca chegarem a calçar ou a vestirem-se para qualquer jogo. O que era "la creme de la creme" da nossa formação, a tal detecção de talentos ou jogadores com elevado potencial, tornou-se na contratação ao quilo.
A progressão "botton-up" dos jogadores, com estes a aprimorarem as suas qualidades, bem como a aprendizagem dos melhores princípios de jogo, foi interrompida pela voragem das aquisições permanentes. Da estabilidade, da paciência, do rigor da programação chegamos agora à mutação permanente, e à qualidade muito duvidosa da prospecção.
Ora isto é a negação dos nossos melhores princípios e o que nos levou à hegemonia. Repare-se em jogadores como Moutinho, Cédric e até Adrien. O seu sucesso actual seria possível se não tivessem eles desfrutado de quase todos eles de mais meia década de aprimoramento? Em pouco tempo subverteu-se a regra de apenas contratar excepcionalmente - um bom exemplo disso é Nani - confiando no trabalho feito em casa, para se tornar a norma.
Diga-se que a contratação de jogadores para estes escalões já acontecia anteriormente como se viu Fokobo, Pallhinha, Wallyson, Carrillo, Rúbio e outros.
Atente-se ao momento em que fomos buscar alguns dos jogadores que nos últimos três anos chegaram a séniores:
Cedric (Sub7), Dier (Sub10), João Mário, Podence e Iuri (Sub11), Ponde e Tobias (Sub12), Patrício, Esgaio e Chaby (Sub13), Adrien, William Matheus e Bruma (Sub14), Ilori (Sub15), Semedo e Gelson (Sub16).
Se com frequência nos ufanamos do valor excepcional da nossa capacidade de formar jogadores porque estamos a recrutar à pazada jogadores de escolas alheias e sem o reconhecimento que a nossa desfruta?
É isso a confissão tácita que já não se trabalha bem em Alcochete?
Nas actuais circunstancias e procedimentos pode ser prometido a liderança e a manutenção da nossa hegemonia no médio / longo prazo?
Poder-se-ia pensar que tal voragem de que aqui se fala se trata de um movimento pontual, mas se nos detivermos nos números das contratações efectuadas desde 2013 percebe-se um movimento de entrada permanente.
2013
B
Samba (E), Matías Pérez (S), Hugo Sousa (S), Lewis Enoh (S), Ousmane Dramé (S), Everton Tiziu (S)
S19
Mama Baldé (B)
S17
Ronaldo Tavares (B), André Serra (S)
S16
Diogo Sousa (S19), Paulo Lima (S19), Jefferson Encada (S19), Janilson Fernandes (S), Tiago Palancha (S)
S15
Tiago Djaló (S19), Al Hassan Lamin (S)
2014
B
Hadi Sacko (E), Ryan Gauld (E), Jorge Santos (S), Jorge Silva (S)
S19
Ivanildo Fernandes (B), Aya Diouf (S19), Luís Elói (B), Rafa Benevides (S), Olávio Gomes (S), Diogo Barbosa (S), José Correia (S), Abou Touré (S), Abdoulaye Dialló (S), Ever Peralta (S), Bruno Pais (S), Khadime Ndiaye (S), Luis Caicedo (S), Paulo Borges (S), Zhang Lingfeng (S), Rúben Varela (S), Bernardo Moura (???)
S17
Gil Santos (S19), Jovane Cabral (S19), Sérgio Santos (S), Muhamed Djamanca (S)
S16
David Tavares (???)
2015
B
Murilo de Souza (S)
S19
Gabriel Pajé (B), Zé Pedro Oliveira (S19), Bruno Fernandes (S19), Sérgio Félix (S19), Francisco Sousa (S), João Coelho (S), Sarbini Martunis (???)
S17
João Pedro Ricciulli (S19)
2016
B
Tomás Rukas (B), Diogo Nunes (B), Eduardo Pinheiro (B), Ricardo Guimarães (B), Fidel Escobar (B), David Sualehe (B), Leonardo Ruiz (B), Budag Nasyrov (B), Betinho (S)
S19
Amânsio Canhembe (S19), Diogo Rodrigues (S19), Pedro Marques (S19)
S15
João Domingues (S15)
Quando falamos da "melhor academia do mundo" o que em valor absoluto não existe e é por isso hiperbólico, está associada a ideia de um lugar de elite, acessível apenas aos melhores. Um pouco como entrar em Yale, Standford, Cambridge, etc. Era um pouco isso que sentiam os tinham sorte de entrar em Alcochete. Hoje parece estar-se tornar numa vulgaridade cujo preço inevitavelmente iremos pagar. O que os podem oferecer de excepcional estes jogadores que agora chegam às carradas, já quase terminada a fase da sua formação?