Nesta profissão de jornalista, que é a minha e sempre há-de ser, são muitas as vezes em que o texto se escreve primeiro e o título apenas ganha forma depois, para corresponder plenamente ao que foi escrito.
Este é um dos casos em que o título surge logo, em que o essencial fica dito no título.
Haverá quem se admire: salvar? Será esse o verbo justo ou não estará o escriba a exagerar?
Não estou, caros amigos. Infelizmente é preciso salvar o Sporting. E só os sócios podem fazê-lo, tão depressa quanto puderem antes que o que resta do nosso Sporting seja assimilado por uma instituição nominalmente sportinguista mas na qual os sócios só podem mandar através de interpostas pessoas ou grupos. Ora a prática conhecida de algumas destas e de alguns destes nem sempre corresponde aos interesses do Sporting.
Deixem-me que vos diga, em jeito de parêntesis, que não escrevo estas linhas sob a influência das insatisfatórias prestações desportivas do momento embora saiba como a disposição do adepto é volúvel e anda muito ao sabor do mau resultado de ontem logo disfarçado pelo bom que hoje se conseguiu.
Apesar de todos estarmos intensamente envolvidos nos acontecimentos da actualidade, não é isso que está verdadeiramente em causa agora. O que é fundamental é salvar o Sporting para que o Clube tenha futuro e este seja bem melhor que o presente.
A tal instituição nominalmente sportinguista de que vos falei atrás é a Sporting, SAD, sociedade desportiva que, paulatinamente, vai tomando conta de todo o Sporting, retirando assim os bens, activos, património e actividades do controlo dos sócios do Clube. Por muito que doa escrever e ler isto, por este caminho o Sporting transformar-se-á num clube de bairro, numa sociedade recreativa – com todo o respeito por instituições como estas – porque não está apenas a ser espoliado do seu futebol mas de quase tudo o resto.
Não tenho qualquer hesitação em reconhecer que teoricamente a criação da Sporting, SAD foi uma boa ideia. Tratava-se de instalar uma estrutura do Clube dedicada exclusivamente ao futebol, altamente profissionalizada e vocacionada para dinamizar o aproveitamento de recursos disponíveis e a criar. Acreditava-se que seria a melhor forma a dar um salto qualitativo propício à integração da mística, da grandeza histórica e da fabulosa escola de formação num todo harmonioso capaz de projectar o Sporting (notem que escrevo simplesmente Sporting) para o topo nacional e para um elevado patamar na Europa.
A ideia era boa, repito. E a modernização de estruturas, sobretudo a construção da Academia, prometia contribuir para o seu êxito.
A degeneração, porém, começou cedo. O facto de os presidentes José Roquette e Dias da Cunha, guiados por objectivos de eficácia e descentralização, terem separado as presidências do Sporting e da SAD, teve um efeito perverso que se manifestou imediatamente na gestão de Luís Duque e Miguel Ribeiro Teles, o dirigente que actua ininterruptamente na SAD desde a fase final da presidência de Roquette, já lá vão 10 anos.
O exercício da presidência da SAD por José Eduardo Bettencourt permitiu ainda atenuar um pouco o fosso orgânico criado entre o futebol profissional do Sporting e o resto do Clube, mas as estruturas de funcionamento da sociedade tinham-se enraizado profundamente com Duque e mantiveram-se, no essencial, até hoje. Houve esforços sérios, em 2004-2005, para restabelecer a ligação original entre o Sporting e a SAD mas o modo como os acontecimentos internos se precipitaram nessa altura foi uma das piores coisas que aconteceu na História do nosso Clube. No rescaldo desse período, durante o qual a agitação interna artificialmente fomentada conduziu à demissão de Dias da Cunha, o velho funcionamento “autónomo” da SAD foi restaurado, reforçado e adquiriu uma nova e mais gravosa atitude contra o genuíno sportinguismo: o novo presidente do Clube, Soares Franco, tornou-se presidente da SAD mas assumindo o status quo “tecnocrático” instalado na sociedade – da qual já tinham sido expurgadas, com poucas e honrosas excepções, todas as figuras carismáticas que asseguravam o amor à camisola, coisa que em Alcochete às vezes parece atrapalhar. Passou ostensivamente a confundir-se o sportinguismo genuíno com a filosofia da SAD – a maior das mistificações de que o Sporting tem sido vítima nos anos mais recentes.
A Escola de Futebol sportinguista é, efectivamente, de grande qualidade técnica mas carece de formação clubista, os jovens e os profissionais não conhecem como deviam conhecer a grandeza e a riqueza histórica do Clube que representam. Não sendo deles a culpa, só pode ser de quem os dirige.
Vale a pena contar uma pequena história elucidativa do modo como o Sporting e os seus dirigentes eleitos pelos sócios são olhados nas estruturas entretanto enraizadas na SAD. O episódio passou-se em 2005, quando a equipa sportinguista foi jogar a Middlesbrough, por sinal em mais uma jornada gloriosa desses tempos em que o Sporting praticava aquele que foi considerado o melhor futebol da Europa. Um funcionário da SAD membro da comitiva oficial mas que estava e está enganado no clube da Segunda Circular ao qual presta os seus serviços, não conseguiu esconder a irritação com a existência de sites na Internet feitos por sportinguistas cujas opiniões não coincidiam propriamente com a sua maneira de entender o funcionamento da SAD. Mas tinha uma explicação para isso. “Isso (esses sites) só pode ser coisa dos amigos do Dias da Cunha”. Assim falava o funcionário da SAD sobre o presidente do Clube, encarado como espécie de adversário ou mesmo inimigo. Três nomes se sucederam na Presidência do Sporting e tal funcionário ainda permanece em Alcochete, continuando a agir em nome do Sporting, recebendo tranquilamente o seu salário.
É um simples episódio, pode até nem ser muito relevante em termos globais mas tem gravidade própria por exemplificar um tipo de mentalidade que se cultiva na sociedade que gere o futebol do Sporting.
É prematuro tecer juízos sobre a gestão do Presidente do Sporting, e também da SAD, José Eduardo Bettencourt, embora todos saibamos que mudou a Direcção do Sporting mas quase nada se alterou quanto aos gestores da SAD. Não podem queixar-se da falta de estabilidade; nós, sportinguistas, é que devemos queixar-nos da falta de resultados e, sobretudo, do conformismo e da falta de ambição do futebol profissional do Sporting.
Continuamos a assistir, porém, à influência da SAD sobre o Clube e não o contrário, como deveria acontecer, porque é neste que os sócios podem decidir.
Argumenta-se sempre que o Sporting Clube tem a maioria na SAD e que não perderia o controlo ainda que ficasse numa determinada situação de minoria. Como diriam os nossos irmãos brasileiros, essa “é conversa para boi dormir”. Há interesses muito activos na SAD, a começar pelos do grupo do sr. Joaquim Oliveira, que não se confundem com os interesses do Sporting Clube e dos sportinguistas. São minoritários, dirão. É verdade, mas não sejamos ingénuos. Nestas coisas em que o dinheiro e os interesses pessoais e de grupo mandam mais não é difícil que estruturas minoritárias, mas bem organizadas e influentes, consigam reunir apoios fundamentais entre os sectores maioritários. Nós, sócios do Sporting, não devemos estar tranquilos por intervir no futebol do nosso Clube apenas através de interpostas pessoas.
Essas pessoas foram eleitas pelos sócios, também é verdade. Mais uma vez não sejamos ingénuos. Que cada um reflicta um pouco sobre como funcionam as Assembleias Gerais e até as eleições. Nada a dizer quanto ao seu formalismo e a legalidade das decisões. Há muitas maneiras, contudo, de formar as opiniões e criar maiorias mesmo sem necessidade de recorrer à arruaça.
Uma delas é o chamado “buraco financeiro” do Sporting, que serve para justificar todos os alarmes e todas as medidas, mesmo que sejam de excepção e apresentadas como males menores e indispensáveis.
A gestão da SAD, ao que parece, nada tem a ver com esse “buraco”, apesar dos inquietantes resultados revelados nos momentos impostos por lei. A culpa parece ser do Sporting Clube e, claro, das gestões imediatamente anteriores a Franco.
Será? Enquanto o Sporting construía a Academia, o Estádio e todas as estruturas patrimoniais que, bem geridas, poderiam ser um pilar fundamental de sustentabilidade e desenvolvimento do Clube, as gestões da SAD – praticadas mais ou menos pelas mesmas pessoas desde 2000 – vendiam as principais pérolas da formação sportinguista enquanto compravam enormes talentos como Koke, Bueno, Tiui, Celsinho e mais uma camioneta de craques como estes, cada um faça o favor de puxar pela memória, consultar os arquivos pessoais ou dos companheiros de tertúlia ou talvez de navegar um pouco pela net. Sem falar já em casos como o aparecimento do dispensado Varela no FC Porto e na troca do considerado melhor júnior da formação pelo “consagrado” Postiga. Troca? Não, a SAD do Sporting ainda pagou por isso. Grande negócio.
Neste cenário, passo a passo e, segundo se diz, para obviar aos efeitos do tal “buraco financeiro”, vai-se vendendo o património, transfere-se a “marca” Sporting para a SAD, prepara-se a transferência da Academia para a SAD, talvez um dia o Estádio vá também para que então a relva seja bem cuidada… Para o Sporting Clube de Portugal pouco mais restará. Ao lado nasceu um novo clube, a Sporting, SAD, e aí os sócios já nada podem decidir.
Como escrevi no título cabe aos sócios salvar o Sporting e devolver o futebol, todo o futebol, ao Clube. Não há dirigentes portadores de um qualquer sopro divino que lhes permita dar a escolher entre as suas soluções ou o caos. O caos será se os sócios deixarem de poder decidir sobre o seu Clube e o seu futebol.
Não há “eu ou o caos”, seja quem for o “eu” em presença. A melhor solução, caros amigos, será a reunificação do funcionamento do Sporting Clube de Portugal sob a tutela dos seus sócios em circunstâncias claras que lhes permitam decidir, sem ser perante sofismas, a melhor maneira de salvar e relançar o Clube nos trilhos da sua História grandiosa. É essencial criar um dinâmico movimento de regeneração do Sporting no qual todos os sócios, portadores das suas diferenças e divergências, possam contribuir para o fim de todos estes equívocos e devolver ao Clube o que é do Clube.
Parece difícil, se calhar as condições não são favoráveis nem estão ao alcance da mão. Temos de agir e acreditar; não podemos ser conformistas à imagem do futebol que a equipa do nosso Clube actualmente pratica reflectindo as carências de sportinguismo nas estruturas que a envolvem.
O futebol tem que ser reintegrado no Sporting, não tenhamos dúvidas disso, a salvação do Clube passa por aí. Nem que seja extinguindo a SAD – um entre muitos outros passos que estão ao alcance da massa associativa desde que esta seja esclarecida, se organize e mobilize para restaurar o nosso querido Sporting Clube de Portugal.
José Goulão, jornalista
*Texto escrito para o "ANortedeAlvalade" por José Goulão, no âmbito da nossa iniciativa "Reflexão Leonina". Jornalista, comentador de assuntos internacionais, ex-director de comunicação do Sporting, cargo que englobava as direcções do jornal "Sporting" e do site oficial. Autor de vários livros sobre a história e feitos do Sporting, entre os quais "ABC do Sporting", Aprende e diverte-te com os 100 anos do Sporting", O meu 1º livro do Sporting", "A Taça das Taças".