A minha carica
Na rua chovia e nem a promessa e vestir o kispo me ajudava como desculpa para enganar a minha Avó a deixar-me sair para a rua jogar uma peladinha, a rua aliás estava vazia, não se ouviam os putos que normalmente por ali andavam à espera de aparecer uma bola, o muda aos 5 acaba aos 10 estava adiado até romper o sol.
Nos rigores do Inverno o miradouro de cimento onde a malta normalmente jogava à bola era substituído pelo chão da cozinha. Neste estádio improvisado rapidamente se marcava a giz um campo, duas balizas, a bola era aquele berlinde mais pequeno a “pileca” ou se já fossem jogadores seniores o berlinde branco dos pirolitos que já só se vendia no bar da piscina municipal.
As equipas eram formadas por caricas, não existia ninguém que não tivesse em casa um arsenal de caricas recolhidas por tudo quanto era café da rua e exigidas aos familiares sempre que se ouvia “Vou ali beber um copo”.
Tinha uma distribuição lógica das caricas, as de colecção guardadas religiosamente numa lata junto aos cromos ganhos a jogar ao “bafa”, as de corrida que tinham de ter o fundo já desgastado para melhor deslizarem e curvarem na pista e as de jogar futebol.
Aqui o pormenor refinava, primeiro, todas tinham de estar decoradas com o cromo do jogador da nossa preferência, segundo, não havia cá jogadores adaptados nem repetidos, um central era um central e não valia jogar com uma equipa só de Oliveiras e Manuel Fernandes, não faltava mais nada, não tens defesa esquerdo vais jogar ao “bafa” até arranjares um, terceiro, podiam-se misturar jogadores de outras equipas mas segundo a regra básica em equipa com Sportinguistas não há benfiquistas e vice-versa, quarto, são apreciadas decorações dos bordos das caricas com as cores da equipa dos jogadores, quinto e último, são permitidos melhoramentos como uma rodela de cortiça no fundo da carica para dar estabilidade, alargar o bordo da carica para bater por baixo no berlinde, deixar um bico para marcar livres.
Um belo dia vou visitar um Tio do meu Pai que tinha uma mercearia, enquanto eles conversavam fui-me perdendo pelos cantos da mercearia, de repente os meus olhos brilham, encontro uma carica gigante, toda dourada e pesada, nunca tinha visto nada assim, corro rapidamente para junto dos adultos com o meu tesouro na mão, “Olhem o que eu encontrei!”, ao mostrar o meu achado o mundo começou a virar-se ao contrário o Tio Zé diz-me “Ó rapaz isso é uma tampa de garrafão, vai lá por no sítio onde estava e não andes a mexericar.”, a minha cara deve ter ficado lívida, imóvel e já com as lágrimas a chegar aos olhos o meu Pai pergunta “Mas para que é que tu queres a carica?”, a minha resposta colocou de novo ordem no mundo, “Isto não é uma carica isto é o Damas!”, “Ó rapaz! O Damas?” interrogou-se o Tio Zé, “Claro, com uma carica deste tamanho ninguém me marca golos!” expliquei eu aquilo que achava ser lógico.
Gargalhada geral, uma caldaça bem assente na nuca, “Leva lá a carica, depois quando for a tua casa quero ver essa equipa imbatível, ouviste rapaz.”, eu já nem ouvia nada, no meu bolso agora morava o Damas e eu só queria organizar o próximo jogo lá em casa.
Nunca devo ter desejado tanto que chovesse, diariamente ia dizendo ao pessoal “O próximo jogo de caricas é lá em casa.”. Finalmente a chuva, tudo para a minha cozinha, dividir jogadores, espalhar as caricas no campo, defesa em linha de 4, W no meio campo, o Manel no ataque, já está, “Não tens guarda-redes!”, era a frase que eu queria ouvir, mão no bolso, sorriso malandro, e sai a minha carica gigante, toda dourada, no interior a cara do Damas ria-se para mim a dizer “Vamos ganhar!”.
Ficaram todos mudos quando poisei entre os riscos que faziam de postes o Damas, a carica ocupava quase a baliza toda, passado uns segundos o meu adversário consegue dizer, “Mas essa carica é maior!”, rematei para não ficarem mais dúvidas, “Claro que é maior, pá, é o Damas!”
Logo ao fim da tarde o Sporting Clube de Portugal vai fazer justiça a um dos seus heróis, esta é a minha pequena homenagem a Vítor Damas. Obrigado, Campeão!
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