Eu era miúdo e o futebol não me dizia muito mais que as vozes que saiam em quase permanente emergência do rádio da minha tia. Uma delas viria mais tarde a reconhecer como a do Grande Artur Agostinho, um dos que nos desenhava na imaginação as jogadas riscadas no relvado, e que dava corpo ao vigor, ao drama, à derrota e à glória.
Um dia, a habitual pacatez do lugar seria substituída pelo frenesim causado pela notícia da visita do Benfica. O grande Benfica dos anos 60 ia descer dos céus da Europa e encarnar naquela terrinha do interior. A equipa local não era mais que grupo de alguns homens solteiros e outros casados que se juntavam num pelado nos poucos momentos que lhe sobravam da lavoura. Ou para fugir dela que, naquela altura, era tão pesada e dura como o granito que pontuava a paisagem. Trazia com ela a dureza austera de quem se levantava antes do sol e se deitava depois dele para amanhar campos e gado. Seria a primeira vez que o futebol sairia da sua dimensão etérea para se tornar de carne e osso e me arrastar em definitivo com ele.
Os dias pareceram ter ficado ainda mais parados do que era hábito até que o grande dia chegou. Porém, com ele não desceram os deuses anunciados, antes sim os que aspiravam a um dia serem como eles. O misto de reservas e júniores, dos quais não me ficou nenhum registo individual gravado, entraram apressados por entre o pó e o bruá da multidão, aplicaram uma tosquia futebolística com o mesmo rigor que os anfitriões dedicavam às suas ovelhas e com a mesma pressa, enfiaram-se na camioneta que se evaporaria na primeira curva.
Cumpri com afã as ordens da minha tia, equipado a rigor.
- "Entregas o ramo ao Sr. Coluna, este que está aqui no calendário, com a braçadeira de capitão. Vês, é este sr. de côr, forte, com a braçadeira de capitão.
Porém não o fiz sem dificuldade. Entre a floresta de pernas musculadas que suportavam corpos enormes para os meus rechonchudos 5 anos pouco se via. Alguém me deve ter guiado e o ramo deve ter ganhado vontade própria, desaparecendo lá no alto.
Soube mais tarde pelas caras de desânimo e despeito mal disfarçado que não pude cumprir as ordens recebidas. O Sr. Coluna não chegaria a cheirar sequer as flores mais carnudas e garridas que havia no jardim. Não as haveria mais bonitas na capital, mas os feitiços de Lisboa certamente que chamavam com urgência. Seriam eles que certamente tinham retido o sr. Coluna, o "endiabrado" Eusébio, o Torres e outros. Nas conversas de então desculpou-se a desfeita com o cansaço provocado por uma deslocação recente ao estrangeiro.
Só voltaria a ver o Sr. Coluna na voz do Artur Agostinho - que interessa o rigor a esta hora, podia até não ser, mas eu gosto do Artur Agostinho - a dar aulas de geometria no rigor dos seus passes, a fintar as leis da física, abrindo túneis maiores que o do Marão, que ainda está por construir. E, no entanto, na sua importância, era invisível, a invisibilidade que só alguns eleitos detêm.
É esta a minha homenagem a esse grande jogador que cresci a ouvir a elogiar e a quem me habituei a respeitar. Respeito que a rivalidade não desmerece, bem antes pelo contrário. A história do Sporting construiu-se com glória, mesmo no tempo de hegemonia do seu rival. As melhores equipas de sempre do S. L. Benfica, que marcaram o futebol durante cerca de duas décadas, encontraram sempre grande oposição das nossas cores, não evitando os nossos 5 títulos nacionais, outras tantas Taças de Portugal e a maior conquista europeia.
Foi desse ombro a ombro que se refinou a rivalidade já antiga e o desejo, necessidade e obrigação de querer ser melhor que puseram Portugal definitivamente no mapa do futebol Mundial, consolidando os caminhos antes desbravados pelo Zé da Europa e Peyroteo.
Também eu comecei a apreciar as pinturas do futebol pela voz desse monstro, já também desaparecido, Artur Agostinho que através dos relatos pela "telefonia" nos mostrava as jogadas, os golos e nos levava às sensações de quem via os jogos ao vivo.
ResponderEliminarEra este o futebol real, verdadeiro, sem invejas ou violência. Que nos ensinaram a sentir e a gostar, os atletas de eleição, os dirigentes respeitadores e sobretudo uma Comunicação Social (será que nesse tempo se pode chamar assim?!) para quem apenas o jogo contava e as tricas eram relevadas para planos de insignificância! E neste particular, o Sr. Artur Agostinho foi quiçá o expoente máximo.
Vão desaparecendo as nossas referências e os valores estão em declínio vertiginoso!
Comovi-me ao ler este post, pois trouxe-me à memória outros tempos e as nossas glórias de então!
Vi o Sr. Mário Coluna jogar! Pouco tempo mas tive esse privilégio! E o primeiro jogo que vi, foi logo um sempre palpitante Benfica - Sporting (2-2 com golos de Figueiredo, Lourenço e Eusébio)! Vibrei com o Mundial de 1966. Coluna, o nosso Capitão, foi grande! Respeitou e foi respeitado, como disse o grande jogador Hilário!
E sempre que vejo a fotografia do cumprimento dos Capitães Coluna pelo Benfica e Maldini pelo Milão sinto o quão era respeitado! Maldini curvou-se perante Coluna num tributo de respeito e admiração. Na década de 60 um branco fazer uma vénia a um preto quer dizer muito! Pelo que deu ao Benfica - meu clube de coração - mas também a Portugal só lhe posso dizer, obrigado!
Descansa em paz Campeão!
A honra, é sentimento intrínseco ao sentir do Leão.
ResponderEliminarHonorável post, digno e espelho/reflexo de um Sportinguista, com memória da História e com algumas estórias para contar.
Sporting Sempre; sempre também Sr. Mário na memória da nossa infância.
SL
Adoro... estas estórias do antigamente... Logo eu um nostálgico incurável.
ResponderEliminarO Coluna merece a homenagem. Nunca o vi jogar (a não ser através de imagens esporádicas), nem sequer ouvi relatos, mas apesar do pouco que vi, isso não me impediu de concordar que Mário Coluna, como jogador era excelente: sóbrio, líder, estratega, inteligente. Não é preciso um conhecimento exaustivo para nos apercebermos do talento... Mais un "monstro" que parte...
Que descanse em paz.
Revejo-me totalmente na homenagem e no espírito de fair-play que caracteriza o post e que corresponde à nossa forma de estar no desporto. É também por isso que sou sportinguista, foi isso que o meu avô me ensinou. Infelizmente há muita maralha no nosso clube que não bebeu da mesma fonte, o que nos torna mais parecidos com o resto da maralha caso não tenham reparado.
ResponderEliminarJP
Mário Coluna traz-me poucas memórias, mas as que tenho são boas, principalmente nunca precisou de se pôr em bicos de pés ou desrespeitar ninguém para ser grande. Resumindo, era um Capitão e comandava pelo exemplo.
ResponderEliminarA primeira memória é uma reportagem sobre o Manchester United que venceu a final da Taça dos Campeões em 1968 - http://www.youtube.com/watch?v=BCXQaGGHB4I - um dos jogadores ingleses que falou, já não me recordo quem, só falava do Coluna, contava ele que o treinador os instrui-o a não se preocuparem muito com o Eusébio mas sim com o Coluna, o Eusébio é genial e impossível de parar individualmente, mas se anulassem o Coluna anulavam o jogo do Benfica e por consequência do Eusébio. Foi a chave dessa vitória nas palavras dele.
A segunda memória vem muito mais tarde, quando o futebol se abastarda para aquilo que é hoje, o fim de um desporto de massas para um negócio de ma$$a$. Na luz tinham substituído recentemente no controlo de entradas os porteiros por uma empresa de segurança, era um jogo normal de campeonato, ainda ao domingo à tarde e Mário Coluna deslocava-se para ver o seu clube de sempre no meio dos adeptos. Para entrar levava aquilo que sempre levou, o normal cartão de atleta do clube, surpresa das surpresas a entrada é-lhe barrada, com aquelas prepotências normais e quadradas dos serviços contratados a terceiros e sem qualquer lampejo ou respeito pela identidade do seu cliente.
Surpreso Mário Coluna preparasse para abandonar a tentativa de entrar na sua casa quando é reconhecido por um grupo de sócios, gerou-se um mini revolta e os sócios bloquearam a entrada, se Mário Coluna não tinha direito a entrar na luz, ninguém tinha. Felizmente o caso chegou a alguém da direcção do estádio e tudo se resolveu.
Maldito futebol moderno.