Decorrem hoje 47 anos sobre a conquista do nosso mais importante título internacional no que ao futebol diz respeito. Por ocasião da celebração dos 45 anos tive a honra de entrevistar João Morais, o autor do fantástico golo da final de Antuérpia. Morais conquistou um lugar eterno na exclusiva galeria de notáveis do Sporting Clube de Portugal. Hoje, passado pouco mais de um ano do seu desaparecimento recordo com saudade o homem que, na sua passagem, me deixou uma grata recordação, pelo seu humanismo e pela sua jovialidade. Se eu percebi bem a sua forma de estar perante a vida, Morais gostaria que hoje fosse um dia de festa, de especial celebração e afirmação do Sportinguismo.
A entrevista:
Faz hoje 45 anos que João Morais saltou de um cantinho para a glória, catapultando o nome do nosso clube para o grupo exclusivo dos vencedores de competições da UEFA. Era mais que justificado ouvi-lo hoje. Morais franqueou-nos a porta de sua casa e quem lá percebe imediatamente ali vive um Sportinguista: as paredes estão pejadas de fotografias e documentos que certificam uma ligação ao clube que nem o tempo ou a distância conseguem esbater. E é uma ligação com 2 sentidos, porque muitos dos testemunhos que cobrem as paredes e estantes são ofertas de núcleos espalhados pelo Mundo, onde a presença do homem de Antuérpia é reclamada.
Passados todos estes anos que importância para si o seu feito? Ainda o vive com intensidade?
Claro que tem. Não podia deixar de ter. Para mim é como se fosse hoje, como se não tivessem passado 45 anos.
E sente que os Sportinguistas se lembram desta data, ainda o acarinham e lembram-se de si?
Sem dúvida. Sempre que sou solicitado para acorrer aos núcleos as pessoas à minha volta acarinham-me.
Marcou o golo numa final que até esteve para não jogar, não é verdade?
É. Veja as coincidências: jogávamos em Alvalade, contra o Vitória de Setúbal, onde jogava o Carlos Cardoso, hoje o treinador, e o Hilário lesionou-se. Eu não estava convocado e na bancada disse logo à Alice (esposa): vais ver que me vão chamar. E assim foi: depois do jogo, pela instalação sonora, mandaram-me dirigir ao Dep. de Futebol.
Mas o caminho para a final foi invulgarmente trabalhoso, pelo que rezam as crónicas…
Se foi. Jogámos 3 jogos com o Atalanta, só nos livramos deles no jogo de desempate em Barcelona, no estádio do Espanhol. E jogamos outros 3 com o Lyon, que na altura tinha uma grande equipa também. E acabamos por só ganhar na finalíssima.
Foi uma campanha a todos os títulos memorável que deixou muita coisa para lembrar. Por exemplo, a maior goleada de sempre nas competições da UEFA.
É sim senhor e não deve ser muito fácil fazer melhor. Ganhamos 16-1 aqui em Lisboa e na 2ª mão em Coimbra (acordo com o Apoel). Foi pena termos levantado o pé senão não sei onde teríamos chegado. Mas é difícil motivarmo-nos quando tudo está decidido.
Não sei se gosto mais desse resultado se o que vos permitiu virar o resultado de 4-1 com que foram derrotados com o Manchester United. Como foi isso possível?
Olhe, com muita vontade e com muita união. Nós éramos um grupo muito unido.
Mas a equipa acreditava que podia virar o resultado ou foi fruto do acaso, mais um daqueles em que futebol é fértil?
Sempre acreditamos que podíamos virar o resultado. Quando chegamos a Lisboa a 1ª coisa que fizemos foi pedir ao Sr. Mário Cunha, director do Dep. Futebol, para afastar o Lúcio, um defesa brasileiro, porque sabíamos que ele não se tinha portado como devia em Inglaterra. E pedimos para ficar em estágio durante os 15 dias que faltavam para o jogo da 2ª mão.
A sério?
É verdade, sim senhor! Só saímos de lá para jogar, treinar e para recolher mudas de roupa interior, sempre acompanhados por um director. Éramos um grupo muito unido e queríamos muito dar a volta aquele resultado.
E conseguiram…
Pois conseguimos. Marcamos cedo e fomos para cima deles. Ao quarto-de-hora já ganhávamos por 2-0. Foi uma grande noite, sim senhor. Osvaldo Silva fez um hat-trick. E foi assim que conseguimos chegar à meia-final.
A tal meia-final com o Lyon, que também teve que ir a desempate?
Pois foi. Ganhámos por 1-0, num golo de Osvaldo Silva e ficamos apurados para a final.
Final que decorreu no célebre Heysel Park, que, mais uma vez, não parecia nada bem encaminhada…
É verdade. Quando demos conta já estávamos a perder por 2-0, o que numa final pode querer dizer que estamos arrumados. Mas nós acreditamos sempre e acabamos por empatar o jogo, já quase no fim, a 3-3. No final queríamos bater no Figueiredo no balneário. Numa jogada ele finta o guarda-redes e com a baliza aberta virou as costas porque pensou que o árbitro tinha apitado fora-de-jogo. Afinal tinha sido alguém da assistência.
E foi assim que chegaram a Antuérpia a finalíssima?
Exactamente.
O que lhe deu para marcar aquele canto daquela forma? Foi por acaso?
Não foi nada por acaso. O Gilberto Cardoso era o nosso treinador do inicio de época, que saiu para dar lugar ao Anselmo Fernandes. Com o Gilberto Cardoso treinava muitas vezes aquele lance. E quando fui marcar o Manuel Marques (massagista, grande figura Sportinguista) disse-me para marcar dessa forma. Eu agarrei na bola, fiz a minha reza e disse-lhe: anda lá minha menina, vais entrar ali naquela baliza. Quando a bola me bateu na bota, naquele sitio que eu sabia, senti logo que ia entrar. E entrou mesmo!
Foi um golo muito cedo, aos 20m de jogo. Ainda sofreram muito até ao fim do jogo?
Não mais do que é normal numa final. Ganhamos muito justamente.
Foi um momento inesquecível, obviamente.
Não imagina o que foi a nossa chegada a Lisboa. Fomos do Aeroporto ao estádio Nacional, onde se jogava um jogo particular entre Portugal e a Inglaterra. Fomos recebidos em delírio e recebemos os parabéns dos jogadores do Benfica e de Bobby Charlton, que eliminamos por 5-0 no jogo com o Manchester.
Do seu tempo de jogador qual o que mais admirou?
É difícil de dizer. Joguei com muitos jogadores de grande qualidade, quer como colegas ou adversários. Mas lembro-me que quando joguei com o Travassos na asa esquerda, quando o Albano saiu, até marcava golos sem saber como a bola me vinha parar aos pés.
Havia benfiquistas no seu plantel?
Não sei se havia benfiquistas no meu plantel. O Mascarenhas tinha vindo da Luz, é verdade. Mas na altura tinha-se muito respeito à camisola, hoje tem-se respeito a um punhado de notas.
Destacaria alguém que lhe tenha sido mais difícil de ultrapassar ou travar?
Olhe, quando jogava a extremo esquerdo o mais difícil de passar era o Festas, do Porto, meu colega de selecção e meu suplente. Acabou por jogar no meu lugar, contra a Inglaterra, naquele jogo fatídico, o que deu muita polémica cá em Portugal. Quando eu jogava a defesa direito o mais difícil foi sem dúvida o António Simões, do Benfica.
Pensava que me ia dizer o Pelé…
O Pelé não entrava na minha área de marcação. Mas era um jogador terrível. Parecia que conseguia colar a bola ao corpo.
No Mundial de 66 houve faíscas entre si e Pelé.
Nada de muito especial. Ele tinha caído sobre a direita e sabia que não podia deixá-lo dominar a bola. Ela vinha em direcção à cabeça dele e eu, vendo que estava fora da área, fiz o que pude, o que deve um defesa fazer para defender os interesses da equipa… O homem teve que sair, mas antes disse-me que me ia acertar. E quando entrou deu-me mesmo. Caí no chão cheio de dores. Quando o Manuel Marques chegou perguntei-lhe se tinha os dentes todos. O Manuel Marques, naquele jeito dele, disse-me: tens os dentes todos, não sejas maricas e levanta-te lá. Mais tarde, numa entrevista à BBC ele foi o próprio Pelé a reconhecer que foi um lance normal de futebol.
Ganharam esse jogo por 3-1, contra o Brasil de Pele e Garrincha. Como foi isso possível?
Olhe, nós entravamos sempre para ganhar e até poderíamos ter sido campeões do Mundo naquele ano. Foi pena termos tido que recuperar daqueles 1-3 contra a Coreia, que nos deixou estourados. Fomos jogar a meia-final cansados, o hotel era longe e ficava numa zona que não permitiu o repouso. Ainda por cima os Ingleses regaram o campo, quando eles eram de porte atlético maior que o nosso e arbitragem foi habilidosa, como é normal nestas coisas com a equipa organizadora.
O que acha da equipa do Sporting de hoje?
Olhe, acho que o Paulo Bento está a fazer um trabalho razoável, embora mexa em demasia na equipa. Uma equipa joga com os mesmos sempre a não ser em casos de lesões ou de má forma. Não passa pela cabeça de ninguém mexer na equipa para jogar com o Bayern. O resultado viu-se. E o Sporting precisa de um defesa central com pé esquerdo. Eu, se fosse no meu tempo, fazia do Polga gato sapato. Metia-lhe a bola a passar pelo pé esquerdo e ia por ali fora. Eu estudava os adversários e sabia como jogavam. Se jogava do lado direito e apanhava pela frente o defesa com pé esquerdo fugia-lhe para dentro, para o pé direito. Era muito rápido. Sabia que uma vez o Prof. Moniz Pereira, (grande sportinguista, que chorava pelo Sporting e não gostava de profssionais) perguntou-me se não queria correr os 100m?
Dos jogadores que jogam hoje qual o que mais admira?
O Veloso, o Moutinho e o Liedson, claro. É daqueles que dá sempre o litro.
Foram precisos mais de 30 anos para o Sporting voltar a uma final europeia. Porquê?
Olhe para lá chegar é sempre preciso sorte. Mas é preciso também saber e muito. É preciso que os treinadores percebam do seu ofício. Eu tive grandes treinadores e os melhores deles eram também sportinguistas como o Prof. Reis Pinto ou o Prof. Moniz Pereira. E que os jogadores sejam bons, como eram no meu tempo, mas também que sejam mesmo uma equipa e tenham vontade de ganhar, sem medos. Quando eliminamos o Manchester se entrássemos a pensar nos nomes tínhamos ficado pelo caminho. E eles até foram campeões europeus e a base da equipa campeã mundial de 66. E que não esquecessem os antigos jogadores para ensinar os mais novos.
Como vê o momento eleitoral no Sporting? Não acha que os Sportinguistas andam muito divididos e os muitos candidatos são o espelho disso?
Não dou muita importância a isso. Fazem falta vitórias. No meu tempo já era assim. Começando a ganhar estas coisas não se fazem sentir.
Quem lhe parece que vai ganhar, pelo menos dos que se sabe já que vão concorrer?
Olhe eu acho que o se o Dr. Soares Franco concorresse ganhava. Assim é difícil de dizer. Olhe o Dr. Ribeiro Telles é também um grande Sportinguista e daria um grande presidente. Na candidatura daquele senhor da Judiciária tem lá também uma pessoa que estimo muito, a Drª Isabel Trigo Mira. Conhece os núcleos todos e tem muito amor pelo clube. Corri o País todo com ela e chegou-me a levar a New Jersey. Uma grande Sportinguista.
Estes são apenas os excertos que considerei mais importantes da longa conversa que tive com João Morais. Uma viagem fantástica de Sportinguismo desde o ano em que nasci até aos dias de hoje. Sinto-me um privilegiado e decidi dividir convosco esta distinção no momento em que celebramos a nossa maior vitória internacional ao nível do futebol. O tempo não precisa de voltar para trás para vivermos outra vez momentos como este. Precisamos sim de saber olhar em frente, porfiar, acreditar e saber ousar. Como o Morais, quando, em boa hora, decidiu saltar de um cantinho para a glória. Logo, ao fim da tarde, ele estará aqui para ler os vossos comentários e, caso assim o entendam, trocar impressões.
Inesquecível.
ResponderEliminarInesquecível como diz o LMGM.
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